Minha Estante
Aqui você encontra trechos de livros que me emocionam, inspiram e me fazem rir ou chorar
sexta-feira, 17 de setembro de 2010
A vida como ela é
Não resistia mais. Dizia de si para si: "Eu avisei e se ele não me acreditou, bem feito". Passaram a se encontrar num apartamento, em Copacabana. Era um amor sem felicidade. Em meio dos beijos mortais, ele esbravejava: "Eu sou o último dos homens e tu és as última das mulheres!" Esta grandiloquencia aplacava, um pouco, o seu remorso.
Quanto a ela, tinha um estremecimento de volúpia ao ser chamada "a última das mulheres". Pedia mesmo: "Diz desaforo! Diz!" Até que, um dia, Orozimbo vai procurá-lo no escritório. foi sóbrio e definitivo: "Eu sei de tudo. E não a mato, sabes por quê? Porque a mãe dos meus fihos é sagrada." Lívido, Euzébio ergue-se; disse: "Estou às suas ordens". E o outro, firme: "Também não te mato, porque seria atingir a mãe dos meus filhos". Baixou a voz, cordial:
- Mas olha: eu não sou o único traído; tu também o és. - pausa e acrescenta: - Ela me trai contigo e a ti, com o Linhares. Percebeste?...
Retirou-se, vingado. Então, sozinho, no corredor, Euzébio caiu de joelhos. Com o rosto mergulhado nas duas mãos, soluçava como uma criança.
A antologia de Nelson Rodrigues com os contos de "A vida como ela é" me chegou às mãos por Andréa e Juneldo, como presente de aniversário. O trecho acima está no conto "Infidelidade" - tema mais que recorrente na obra de Nelson Rodrigues, bem como inveja, desejo, ciúme, obsessão, dilemas morais diversos. Sempre atuais, apesar das cores de época, os textos podem ser lidos ao acaso. Um alerta: o autor não agrada a todos. Há aqueles que o acham repetitivo e outros que não suportam a temática abordada em seus textos - sai caro demais ao coração ou à consciência... É ler para saber - ou não!
terça-feira, 7 de setembro de 2010
A Paixão Segundo GH
Perdão é um atributo da matéria viva.
_ Vê, meu amor, vê como por medo já estou organizando, vê como ainda não consigo mexer nesses elementos primários do laboratório sem logo querer organizar a esperança. É que por enquanto a metamorfose de mim em mim mesma não faz nenhum sentido. É uma metamorfose em que perco tudo o que eu tinha, e o que eu tinha era eu - só tenho o que sou. E agora o que sou? Sou: estar de pé diante de um susto. Sou: o que vi. Não entendo e tenho medo de entender, o material do mundo me assusta, com os seus planetas e baratas.
Eu, que antes vivera de palavras de caridade ou orgulho ou de qualquer coisa. Mas que abismo entre a palavra e o que ela tentava, que abismo entre a palavra amor e o amor que não tem sequer sentido humano - porque - porque amor é a matéria viva. Amor é a matéria viva?
O que foi que me sucedeu ontem? e agora? Estou confusa, atravessei desertos e desertos, mas fiquei presa sob algum detalhe? como debaixo de uma rocha.
Não, espera, espera: com alívio tenho que lembrar que desde ontem já saí daquele quarto, eu já saí, estou livre! e ainda tenho chance de recuperação. Se eu quiser.
Mas quero?
Como ler Clarice Lispector e continuar a mesma matéria? Como ler a obra "A Paixão Segundo GH" e não entrar em parafuso, não se questionar, por um segundo que seja? Se o silêncio, na vastidão das palavras, da personagem GH (todos nós, um pouco?) não é inquietude, prece de desvalidos, o que será? Da edição que tenho em casa, herdada de alguém, caem algumas folhas e jorram dúvidas e sussurros. Dependendo do dia, dependendo da página, também me entrego, me exponho ou me devoro.
quinta-feira, 2 de setembro de 2010
Cartas Apaixonadas de Frida Kahlo
Por que você estuda tanto? Que segredo está procurando? A vida logo o revelará a você. Por mim, já sei tudo, sem ler nem escrever. Algum tempo atrás, talvez uns dias, eu era uma moça caminhando por um mundo de cores, com formas claras e tangíveis. Tudo era misterioso e havia algo oculto; adivinhar-lhe a natureza era um jogo para mim. Se você soubesse como é terrível obter o conhecimento de repente - como um relâmpago iluminando a Terra! Agora, vivo num planeta dolorido, transparente como o gelo. É como se houvesse aprendido tudo de uma vez, numa questão de segundos. Minhas amigas e colegas tornaram-se mulheres lentamente. Eu envelheci em instantes e agora tudo está embotado e plano. Sei que não há nada escondido; se houvesse, eu veria.
O texto acima é uma das dezenas de cartas escritas pela Frieducha a seu então namorado Alejandro Gómes Arias, em setembro de 1926, e integra o livro "Cartas Apaixonadas de Frida Kahlo", compilado por Martha Zamora. Tenho um grande fascínio por Frida, sua arte e vida. Este livrinho, com 160 páginas, tocou-me primeiro pela diagramação (adoro obras em formatos diferentes e que têm um quê de atrevimento na alma!). Na publicação da José Olympio Editora, os leitores acompanham textos escritos pela artista plástica mexicana antes mesmo do fatídico acidente de ônibus, em 1925, que lhe deixou sequelas pelo resto da vida. Além, bem além da tristeza que a toca, há sempre uma Frida espirituosa, sarcástica, com um grande humor negro, mas extremamente amorosa, que mistura espanhol, inglês e desenhos nos seus mais de 80 escritos. Volto a essa obra várias vezes. Escolho uma página ao acaso... e sempre me faço feliz.
quarta-feira, 25 de agosto de 2010
O Castelo de Vidro
Quando, finalmente, a chuva chegava, o céu escurecia e o ar ficava pesado. Gotas de chuva do tamanho de bolas de nuvem despencavam das nuvens. Certos pais temiam que seus filhos fossem atingidos por um raio, mas mamãe e papai nunca se preocuparam e nos deixavam sair e brincar na chuva morna e torrencial. Brincávamos de lutar na água, cantávamos e dançávamos. Enormes descargas de raios detonavam nas nuvens baixas, e trovões faziam a terra tremer. Nós ficávamos ofegantes vendo os raios mais espetaculares, como se estivéssemos todos assistindo a um show de fogos de artifício. Depois do temporal, papai nos levava até os riachos, e testemunhávamos a inundação repentina que atravessava a terra, trovejando. No dia seguinte, os cactos saguaros e os figos-da-índia estavam inchados de beber tudo o que podiam, porque sabiam que, provavelmente, levaria muito tempo até a próxima chuvarada.
A gente era meio que nem os cactos. Comia de maneira irregular e, quando comia, se entupia. Uma vez, quando morávamos em Nevada, um trem cheio de melões que estava indo para o leste descarrilou. Eu nunca tinha comido melão antes, mas papai trouxe engradados e mais engradados de melão cantalupo. Comemos melão fresco, melão cozido e até melão frito. Outra vez, na Califórnia, os catadores de uva entraram em greve. Os donos dos vinhedos deixaram as pessoas colherem suas próprias uvas por dez centavos o quilo. Fizemos uns 160 quilômetros de estrada até o vinhedo, onde as uvas estavam tão maduras que estavam quase explodindo no pé, em cachos maiores do que a minha cabeça. Enchemos todo o carro de uvas verdes - a mala e até o porta-luvas - e papai empilhou tantos cachos nos nossos colos que quase não se via nada à frente. Durante muitas semanas, comemos uva no café-da-manhã, no almoço e no jantar.
Comprei o livro da jornalista norte-americana Jeannete Walls em março de 2009. De lá para cá, já deixei " O Castelo de Vidro" na mão de várias pessoas do bem (e que constumam devolver o que lhes foi emprestado). A obra de Jeannete Walls está no rol das autobiografias e ficou por vários anos na lista dos livros mais vendidos do The New York Times - o que para mim não quer dizer nada, afinal, não me guio por esta fórmula na hora de comprar e ler um livro. Fui pega mesma foi pela orelha! Que não mentiu em nada ao tratar as memórias de Jeannete Walls como um impressionante relato de superação e amor. Na obra, lemos histórias de uma família que aprendeu a criar finais felizes, independente de qualquer dissabor, mas também o quanto é preciso de firmeza e força de vontade para superar a pobreza, a fome e até o desprezo dos próprios pais. Livro para ser lido, relido e guardado com carinho.
Os Monólogos da Vagina
- A vagina tem cheiro de quê?
Terra.
Lixo molhado.
Deus.
Água.
Manhã novinha em folha.
Profundidade.
Gengibre doce.
Suor.
Depende.
Almíscar.
De mim.
Sem cheiro, me disseram.
Abacaxi.
Essência de cálice.
Paloma de Picasso.
Cravo e Canela.
Rosas.
Floresta de jasmim almiscarado, profunda, profunda floresta.
Umidade de musgo.
Doce delioso.
Oceano Pacífico.
Alguma coisa entre peixe e lírios.
Pêssegos.
Bosques.
Fruto maduro.
Chá de kiwi-morango.
Peixe.
Céu.
Vinagre de água.
Luz, licor doce.
Queijo.
Oceano.
Sexy.
Esponja.
O princípio.
Obra-prima de Eve Ensler, "Os Monólogos da Vagina" é muito mais comentado do que lido. Muitos sabem que a obra existe e até tecem comentários diversos sobre a mesma, sem que nunca tenham, de fato, passado uma única vista sobre o livro. O que tenho em mãos comprei no ano passado, numa promoção em João Pessoa. Não parecia publicação nova e já possuía um certo ar de sebo em suas páginas. A obra, na verdade, que virou espetáculo de grande público no Brasil, é uma adaptação do monólogo criado por Eve Ensler e que acordou muitas platéias por aí. Tem poucas páginas e surprende por mostrar o quanto a região do "lá embaixo" ainda é tida como tão incerta e veladamente proibida de ser dita, exceto sob forma de sussurro. Vagina, lábios, vulva, clitóris... existem nos dicionários, nas enciclopédias, mas não assumem a força criadora desse órgão tão maravilhoso e que assusta as pessoas à simples menção do seu próprio nome: vagina, vagina, vagina. Como diz a autora: "Eu digo 'vagina', porque quero que as pessoas reajam".
terça-feira, 24 de agosto de 2010
O Menino do Dedo Verde
- Recomecemos nossa lição. Que é preciso para lutar contra a miséria e suas terríveis consequências? Pense um pouco... É preciso uma coisa que começa com a letra O.
- Ouro?
- Não. É preciso ordem!
Tistu permaneceu um instante calado. Não parecia muito convencido. E, quando acabou de refletir, ele disse:
- Esta sua ordem, Sr. Trovões, o senhor tem certeza de que ela existe? Eu não acredito.
As orelhas do Sr. Trovões ficaram tão vermelhas, tão vermelhas, que já não pareciam orelhas, mas tomates.
- Porque se a ordem existisse - prosseguiu Tistu na maior calma - não haveria miséria.
Tistu é o maravilhoso personagem do livro "O Menino do Dedo Verde", obra de Maurice Druon,que acabei de comprar para Pedro, meu filho de 6 anos. Ainda menina, eu adorava ler e reler esse livro. E o encantamento continua com meu filhote, que passou dias e mais dias sonhando que colocava o próprio polegar em muros, portas e castelos afora, também querendo transformar o mundo. Na edição de número 88, com tradução de D. Marcos Barbosa pela José Olympio Editora, "O Menino do Dedo Verde" continua seduzindo crianças e adultos de todo o mundo. Uma delícia só!
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